Se o psiquismo humano fosse um arco-íris, uma de suas cores seria o conceito de Instinto. E de entre as várias escolas da psicologia, existe uma – a Psicanálise – para a qual o conceito de instinto assume um papel verdadeiramente nuclear em toda a sua teoria. Assim, pois, dado haver sido desafiado a escrever um artigo que se enquadrasse com o tema “O Arco-Íris da Mente: Desmistificando Tabus”, decidi apresentar muito resumidamente uma introdução ao conceito de Instinto, segundo a perspectiva do fundador da psicanálise, Sigmund Freud.
Em sua teoria psicanalítica, o instinto é considerado como a representação psíquica de poderes orgânicos, isto é, de uma fonte de excitação continuamente corrente ou intra-somática. É, pois, um dos conceitos limites entre o psíquico e o físico. Não procedendo do mundo exterior, senão do interior do corpo, a fuga motora é ineficaz contra ele. O que diferencia os instintos uns dos outros e lhes dá suas qualidades específicas é sua relação com suas fontes somáticas e seus fins.
Dado que para explicar as necessidades do homem e do animal supunha a biologia a existência de um instinto sexual, a libido, do mesmo modo que supunha para explicar a fome, a de um instinto de nutrição, começou, pois, a psicanálise por opor aos instintos sexuais os instintos do eu (também designados por instintos de autoconservação), e encontrou-se então de acordo com a tese, feita popular, do poeta Schiller que atribuía todo o suceder universal a duas únicas forças: À fome e ao amor. O que se conhecia como instinto sexual era algo muito composto e podia decompor-se em seus instintos parciais.
Por conseguinte, deu nosso autor o nome de libido aos revestimentos ou catexias de energia que o Eu destaca aos objectos de seus desejos sexuais e o nome de interesse a todos os demais que emanam dos instintos de conservação.
Posteriormente, decorrente do estudo sobre o narcisismo, Freud introduz uma modificação. A dicotomia instintos sexuais (a libido) vs instintos do Eu evoluiu para a de Instintos de Vida (também designados por Eros) vs Instintos de Morte. Os instintos passaram agora a representar tendências intrínsecas da substância viva à reconstituição de um estado anterior, ou seja, historicamente condicionadas e de natureza conservadora, como se fossem manifestação de uma inércia ou de uma elasticidade do orgânico. Esta tendência essencialmente conservadora fica explicada pelos fenómenos da repetição obsessiva. Ou dito de outro modo, desde o momento mesmo em que um estado assim constituído é perturbado nasce uma tendência a reconstruí-lo, tendência que revoca fenómenos que Freud designou como uma obsessão de repetição. Ambas classes de instintos, o Eros (Instintos de Vida) e o Instinto de Morte, actuariam e lutariam entre si, desde a primeira génese da vida. Devemos ter, ademais, em conta, que as tendências sexuais são extraordinariamente plásticas. Podem substituir-se reciprocamente, e uma só pode assumir a intensidade das demais, resultando deste modo que quando a realidade recusa a satisfação de uma delas existe uma possível compensação na satisfação de outra.
Segundo Freud, um instinto seria, pois, uma tendência própria do orgânico vivo à reconstrução de um estado anterior, que o animado teve de abandonar debaixo do influxo das forças exteriores, perturbadoras.
Esta concepção do instinto parece-nos estranha por nos termos acostumado a ver nele o factor que impulsiona à modificação e à evolução, e ter agora que reconhecer no mesmo todo o contrário: a manifestação da natureza, conservadora do animado.
Ainda segundo o autor, as penosas migrações de certos peixes na época da desova fazem-nos observar que nos fenómenos da hereditariedade e nos da embriologia temos as mais magníficas provas da obsessão orgânica à repetição, isto é, todas as formas das quais o animal descende, em vez de marchar rapidamente e por o caminho mais curto à sua definitiva estrutura.
Os instintos ao receberem cada uma destas transformações forçadas de seu curso vital conservando-as para a repetição, produzem deste modo a enganadora impressão de serem forças que tendem para a transformação e o progresso, mas não se propõem mais que alcançar um antigo fim por caminhos tanto antigos como novos.
Denominamos, portanto, instintos às forças que supomos detrás das tensões causadas pelas necessidades do Inconsciente, ou dito de outro modo, supomos que as forças que movem o aparato psíquico nascem nos órgãos do soma como expressão das grandes necessidades físicas. Tais instintos enchem o Inconsciente (também designado em inglês de “ID” ou em castelhano de “Ello”), podendo afirmar-se sinteticamente que toda a energia do Ello procede dos mesmos, e, ademais, que também as forças do Eu têm igual origem, sendo derivação das do Ello. Os instintos representam, por conseguinte, as exigências somáticas apresentadas à vida psíquica, e ainda que são a causa última de toda a actividade, sua índole é essencialmente conservadora, pois de todo o estado que um ser vivo alcança surge a tendência a restabelecê-lo enquanto haja sido abandonado.
Por outro lado, na frustração cultural, isto é, na renúncia a satisfações instintuais poderosas impostas pela cultura (por supressão, repressão ou algum outro processo), reside a causa da hostilidade oposta a toda a cultura mesma. Não é fácil compreender como se pode subtrair um instinto à sua satisfação; propósito que, por outra parte, não está nada livre de perigos, pois se não se compensa economicamente tal defraudação haverá que ater-se a graves transtornos.
De acrescentar ainda que um instinto diferencia-se de um estímulo em que procede de fontes de estímulos do interior do soma, em que actua como uma força constante e em que a pessoa não pode subtrair-se a ele por meio da fuga, como quando se trata de um estímulo externo.
No caminho da fonte ao fim, os instintos alcançam actuação psíquica. Representamo-los como certo montante de energia, que tende para uma direcção determinada. A conduta dos instintos primigéneos (Instintos de Vida e Instintos de Morte), sua distribuição, sua mescla e sua difusão não se pode pensar que estão confinadas a uma simples província do aparato psíquico, o Ello, o Eu ou o Supereu.
Podemos considerar agora alguns termos empregues por Freud em relação com o conceito de instinto sexual:
(1) Perentoriedade. – Por perentoriedade de um instinto entende-se seu factor motor, isto é, a quantidade de exigência de trabalho que representa.
(2) Fonte. – Por fonte designamos aquela região do soma da qual extrai cada instinto parcial seu estímulo (como por exemplo a excitação sexual). Dos orgãos do corpo emanam excitações de duas classes, uma das quais a designamos como especificamente sexual e o orgão correspondente como «zona erógena» do instinto parcial dela emanado.
Existem zonas erógenas predestinadas, como o exemplo do chuchar, mas podem igualmente funcionar como zonas erógenas cada uma das partes da pele e cada órgão dos sentidos – na realidade todos e cada um dos órgãos e das mucosas –, enquanto que existem determinadas zonas erógenas especiais. Inicialmente, as excitações surgidas de todas estas fontes não actuariam todavia conjuntamente, senão que cada uma perseguiria seu fim especial, limitado exclusivamente à consecução de um determinado prazer. Por conseguinte, na infância, o instinto sexual não está unificado e não tem objecto, é dizer, é inicialmente auto-erótico, actuando a partir de instintos isolados. De acordo com Freud, o que denominamos instintos parciais da sexualidade derivam-se directamente destas fontes internas da excitação sexual ou compõem-se de aportações de tais fontes e das zonas erógenas.
Acresce-se ainda que todos os instintos sexuais são qualitativamente iguais e seu efeito não depende senão das magnitudes de excitação que levam consigo e quiçá de certas funções desta quantidade. As diferenças que apresentam as funções psíquicas dos diversos instintos podem atribuir-se à diversidade das fontes destes últimos.
É assim inegável que a libido tem fontes somáticas que lhe dão origem, e que flui para o Eu desde distintos órgãos e partes do corpo, como o observamos com maior claridade naquela parte da libido que, de acordo com seu fim instintual, denominamos «excitação sexual». Uma vez o Eu se diferencia do Ello, toda a libido gerada nas fontes somáticas torna-se perceptível para o Eu, isto é, encontra representação psíquica. Por outro lado, impulsos procedentes de uma fonte têm a faculdade de unirem-se a outros de fontes distintas e compartirem assim seus ulteriores destinos.
(3) Objecto. – O objecto do instinto é a coisa na qual ou por meio da qual parte a atracção sexual e pode o instinto alcançar sua satisfação. Não é necessariamente algo exterior ao sujeito, senão que pode ser uma parte qualquer de seu próprio corpo.
Pode apresentar-se o caso de que o mesmo objecto sirva simultaneamente à satisfação de vários instintos. Quando um instinto aparece ligado de um modo especificamente íntimo e estreito ao objecto, falamos de uma fixação de dito instinto. Esta fixação tem efeito com grande frequência em períodos muito precoces do desenvolvimento dos instintos e põe fim à mobilidade do instinto de que se trate, opondo-se intensamente à sua separação do objecto.
Assim, pois, como consequência da superior intensidade de alguns componentes (instintos parciais), ou de satisfações prematuras, produzem-se fixações da libido a determinados lugares do desenvolvimento. A estes lugares retorna logo a libido quando tem efeito uma repressão posterior. Observações ulteriores demonstraram a Freud, ademais, que o lugar da fixação é também decisivo para a «eleição de neurose», ou seja, para a forma que adopta a enfermidade posteriormente.
(4) Fim. – Por fim designamos o acto para o qual impulsiona o instinto. Tanto com respeito ao objecto como ao fim existem múltiplos desvios. A capacidade de mudar o fim sexual primitivo por outro, já não sexual, mas psiquicamente afim ao primeiro é o que designamos por sublimação.
O fim do instinto sexual está, pois, em fazer surgir a satisfação pelo estímulo apropriado de uma zona erógena eleita e cessar assim a excitação de dito órgão, é dizer, efectuar o apaziguamento das necessidades somáticas. Esta satisfação tem de haver sido experimentada anteriormente para deixar uma necessidade de repeti-la, já que «a libido nunca abandona gostosa uma posição que já alcançou».
O fim de um instinto, isto é, os modos de gratificação do mesmo (que podem ser tanto activos como passivos) é, portanto, sempre a satisfação (descarga), que só pode ser alcançada pela supressão do estado de estimulação da fonte do instinto, mas pode experimentar uma mutação da actividade à passividade. Mas ainda quando o fim último do instinto é invariável, pode haver diversos caminhos que conduzam a ele, de maneira que, para cada instinto podem existir diferentes fins próximos susceptíveis de ser combinados ou substituídos entre si. Os instintos podem, pois, trocar seu fim (por deslocamento) e também substituir-se mutuamente, passando a energia de um ao outro.
A experiência permitiu a Freud falar também de instintos coartados em seu fim, isto é, de processos aos quais se permite avançar certo espaço até à satisfação do instinto, mas que experimentam logo uma inibição ou um desvio. Temos de admitir que também com tais processos encontra-se enlaçada uma satisfação parcial. Estes instintos de fim inibido são, pois, impulsos instintivos de fontes conhecidas e com fim inequívoco, mas que fazem alto no caminho da satisfação, produzindo-se assim uma carga de objecto duradoura e uma tendência permanente de efeito. Desta classe resultam, por exemplo, a relação de carinho que procede, induvidavelmente, das fontes de necessidade sexual e que renuncia regularmente à sua satisfação.
O fim pode ser conseguido no próprio corpo: mas pelo regular interpola-se um objecto externo, no qual o instinto alcança seu fim exterior; seu fim interior é sempre a modificação somática, sentida como satisfação. São factos induvidáveis, ademais, que impulsos procedentes de uma fonte unem-se a outros de fontes distintas e compartem seus ulteriores destinos, e que, pelo geral, uma satisfação de um instinto pode ser substituída por outra.
Também as relações do instinto com o fim e o objecto podem, pois, ser trocadas por outras, ainda que, de todos os modos, seja sempre a relação com o objecto a mais fácil de relaxar.
Caro(a) leitor(a), este foi um pequeno vislumbre por cima do muro em relação ao que podemos encontrar quando lançamos alguma luz para o que se passa no Inconsciente de todo o ser humano. Mas o psiquismo humano não é composto apenas por um Inconsciente. Há também um Consciente, do qual se desprende um Eu (onde se encontra nossa capacidade de julgar, decidir e passar à acção) e um Supereu (que inclui nossos valores morais, nossa consciência moral). Estas instâncias nem sempre se encontram de acordo, facto que quebra a unidade da pessoa. A saúde mental depende muito dos conflitos que ocorrem entre estas instâncias, mas também das dinâmicas instintuais envolvidas, e sobretudo, da qualidade e da intensidade das mesmas.
Caso queira aprofundar o seu conhecimento e domínio sobre o seu psiquismo, agende já uma primeira consulta.
Gonçalo Vitória
Psicólogo Clínico
Ballesteros y de Torres, L. (1996). Sigmund Freud: Obras Completas – Tres ensaios para una teoria sexual 1905. 1ª Edição, Biblioteca Nueva. 2º Volume.
Ballesteros y de Torres, L. (1996). Sigmund Freud: Obras Completas – Autobiografia 1924 [1925]. 1ª Edição, Biblioteca Nueva. 3º Volume.
Ballesteros y de Torres, L. (1996). Sigmund Freud: Obras Completas – Analisis profano (Psicoanálisis y medicina): Conversaciones con una persona informal 1926. 1ª Edição, Biblioteca Nueva. 3º Volume.
Ballesteros y de Torres, L. (1996). Sigmund Freud: Obras Completas – El malestar en la cultura 1929 [1930]. 1ª Edição, Biblioteca Nueva. 3º Volume.
Ballesteros y de Torres, L. (1996). Sigmund Freud: Obras Completas – Nuevas lecciones introductorias al psicoanalisis 1932 [1933]. 1ª Edição, Biblioteca Nueva. 3º Volume.
Ballesteros y de Torres, L. (1996). Sigmund Freud: Obras Completas – Analisis terminable y interminable 1937. 1ª Edição, Biblioteca Nueva. 3º Volume.
Ballesteros y de Torres, L. (1996). Sigmund Freud: Obras Completas – Compendio del psicoanalisis 1938 [1940]. 1ª Edição, Biblioteca Nueva. 3º Volume.
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