
Para além da cor dos olhos, da predisposição para algumas doenças e da aprendizagem de comportamentos, herdamos da nossa família a forma como gerimos as nossas emoções. A gestão emocional, não vem inscrita no nosso ADN, mas está de certa forma guardada no nosso inconsciente. Ao longo do processo de psicoterapia, é muito comum apercebermo-nos de que ou estamos a rejeitar ou a repetir padrões comportamentais e a viver ansiedades e traumas que na verdade não são nossos.
Ao pensarmos sobre o nosso desenvolvimento, conseguimos aceder com mais ou menos facilidade ao impacto que as relações com os nossos pais têm em nós, bem como ao impacto que a relação entre os nossos pais tem sobre nós (e consequentemente nas relações que estabelecemos com os outros). Este impacto relacional tem sido amplamente estudado em psicologia, tendo sido John Bowlby o maior estudioso e pensador desta dinâmica relacional.
Segundo Bowlby, a forma como nos relacionamos com os outros é determinada pelo estilo de vinculação que estabelecemos com as figuras cuidadoras da nossa infância, podendo desenvolver estilos de vinculação específicos, seguros ou inseguros (a teoria de John Bowlby é bastante mais completa e complexa, uso esta versão simplificada para dar a ideia de como a nossa experiência precoce influência o nosso comportamento nos dias de hoje). Assim, uma criança que tenha estabelecido um tipo de vinculação segura, tenderá a crescer e a criar relações positivas com os outros, a ter maior facilidade em estabelecer relações e a encontrar um equilíbrio mais harmonioso entre intimidade e independência. Por sua vez, uma criança que estabeleça um dos restantes estilos de vinculação – mais inseguros – poderá encontrar mais dificuldades no relacionamento com o outro, podendo tornar-se uma pessoa mais ansiosa nos relacionamentos, procurando insistentemente níveis de intimidade elevados, pondo de parte a sua necessidade de alguma independência e espaço pessoal. Tipicamente, são pessoas mais impulsivas, preocupadas, emocionais e dependentes nas suas relações.
Por outro lado, podem tornar-se pessoas mais desligadas e independentes, que quase evitam o estabelecimento de relações amorosas e de compromisso. Para estas pessoas, os relacionamentos amorosos não são vitais para a sua vida, assumindo um papel meramente secundário, e são também pessoas que têm maior dificuldade em lidar com seus sentimentos.
Para além da forma como nos relacionamos com os outros, herdamos muitas ideias, valores, normas, preconceitos etc., que muitas vezes entram em conflito com a nossa forma de ver o mundo, os outros, e até a nós mesmos. Toda esta informação está guardada em nós e chegou-nos através de vários veículos, várias situações e episódios dos quais, por vezes, nem guardamos memória.
A diversidade de crenças é maior quantas mais referências existirem, mas, ainda assim, a herança emocional vem demonstrar que somos um pouco menos livres e originais do que pensamos.
A família – primeira forma de sociedade em que nos inserimos, no seio da qual aprendemos as primeiras regras e sentimos os primeiros afetos – é a “instituição” que nos começa a moldar mesmo antes de darmos os primeiros passos. O papel central da família é assumido pelos pais e é, por isso, que uma relação pais-filhos baseada no amor, carinho, respeito, segurança e aceitação é essencial. Em terapia, conseguimos perceber que muitas das dificuldades relacionais vêm de experiências relacionais de abandono, carências, desrespeito e com a não satisfação de necessidades psicológicas que todos temos (conforto e segurança, novidade, reconhecimento, conexão e pertença, crescimento).
Até aqui, todo este puzzle já é bastante complicado limitando-se apenas às influências educativas e emocionais transmitidas pelos nossos pais. Contudo, a investigação na área da psicologia transgeracional, mostra-nos que esta influência vai bem para além disso.
Ao longo dos séculos houve várias abordagens aos fenómenos de repetição inconsciente. Freud falou na «alma coletiva da família», Carl Jung no «inconsciente coletivo», e Moreno no «co-inconsciente», mas foi a psicóloga francesa de origem russa Anne Ancelin Schützenberger – já nos anos 1980 -, que estudou e batizou um novo campo de estudo: A psicogenealogia ou psicologia transgeracional, que defende que os legados psicológicos familiares, como o trauma transgeracional, podem perpetuar-se durante sete gerações, não sendo apenas fruto da aprendizagem social.
Um dos temas explorados pela autora, são as lealdades inconscientes (falamos muitas vezes em “alianças familiares” no contexto terapêutico), que se definem como repetições de padrões relacionais, tanto positivos como negativos, por uma questão de amor e solidariedade a outra figura. Esta influência pode chegar-nos pela nossa experiência, pela voz dos avós ou através das histórias contadas pelos nossos pais, mas estudos têm demonstrados que podem ir para além da geração dos nossos avós, ou seja, é uma influencia que vai muito para além da nossa experiencia e memória.
Sabe-se que a transmissão transgeracional do trauma acontece, só não se sabe ainda exatamente como, sobretudo quando os eventos traumáticos não foram presenciados nem narrados por nós. A resposta para este mistério pode estar nos marcadores epigenéticos, que atuam como uma ponte entre o ambiente e os genes: não os alteram, mas ativam ou suprimem a sua expressão.
Estudos recentes da investigadora Rachel Yehuda, do Hospital Mont Sinai, em Nova Iorque, com descendentes de sobreviventes do Holocausto, parecem confirmá-lo. Já se sabia há décadas que este grupo sofria com mais frequência sintomas de stress pós-traumático, somatização e outras psicopatologias, mas o que os estudos-piloto de Rachel Yehuda trouxeram de novo foi a compreensão de que o trauma pode alterar os marcadores epigenéticos, não só dos sobreviventes, mas também dos descendentes, até à terceira geração.
Todo este conhecimento que lhe transmiti ao longo deste texto, vem reforçar a importância de entrarmos em contacto com as nossas memórias, emoções, com as nossas crenças, pensamentos e padrões comportamentais. Se grande parte destes é herdada, faz todo o sentido termos espaço para os desconstruir e pôr em causa, e perceber até que ponto nos faz sentido sermos regidos por ideias, valores ou traumas dos nossos pais (e avós). O processo de desenvolvimento normal à chegada da idade adulta, é o da desvinculação, que no fundo traz consigo um processo de revisão de tudo o que ficou para trás até ao momento em que começamos a viver a nossa autonomia e independência.
Sabendo tudo isto de antemão, devo perguntar-me o que quero passar para os meus filhos, e só conseguirei passar o melhor de mim se todos os nós que tenho forem desembaraçados, e se conseguir dar significado e sentido às experiências do meu passado.
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Excelente artigo Mariana. Parabéns!