O desafio desta edição da revista Psicologia Digital, viver na mente certa: Caminhos para o Bem-Estar Psicológico” levou-me a pensar na PRONTIDÃO, um estado mental que expressa a preparação necessária para a pessoa poder compreender e manipular de forma suficiente as propriedades de uma determinada experiência ou atividade. Quando o consegue fazer realiza uma aprendizagem que é habitualmente geradora de transformação evolutiva.
O estado de prontidão implica a posse de recursos, os conhecimentos necessários à compreensão da tarefa em causa e um nível de atividade mental suficiente para a manipulação daquelas propriedades. Deste modo, a prontidão facilita a internalização das propriedades que previamente apenas existiam nas experiências e atividades que cada pessoa contacta, (elementos externos), e que posteriormente passam a existir na nossa mente, (elementos internos).
Essas propriedades são organizadas em circuitos neuronais que permitem respostas mais automáticas e bem-sucedidas nas situações futuras. Esta transformação evolutiva pode ser observada no contraste entre a criança que ainda não fala e cuja linguagem permanece externa, apenas presente nas pessoas e atividades que ela contacta e a criança que já se apropriou da linguagem e passa a manipulá-la na sua atividade mental pela participação suficiente nessas atividades. A internalização da linguagem apenas acontece quando a criança está em estado de prontidão para dela se apropriar. Para tal é fundamental que ela participe em atividades que suscitem o desenvolvimento dos recursos necessários para se apropriar da ferramenta da linguagem.
Dito de outro modo fazemos inicialmente as coisas com a ajuda de elementos externos, pessoas, situações, objetos, para depois as fazermos de modo independente. Parece um problema de ovo e galinha ou uma pescadinha de rabo na boca, mas apenas o é parcialmente. Porquê? Porque o nosso desenvolvimento deve traduzir-se pela progressiva capacidade de adquirir os estados de competência potencial com menor ajuda. Isto quer dizer que ao longo do desenvolvimento vai aumentando a a nossa responsabilidade de angariarmos os recursos necessários e, suficientes, para alcançarmos o êxito e bem-estar nos vários domínios da nossa vida. Quando isso não acontece não estamos a viver na mente certa.
Crescer deve expressar uma progressiva capacidade de antecipação das condições que vão acrescentar valor na nossa vida e de as conseguir manipular a nosso favor. Mais do esperar que a vida nos prepare para termos a prontidão para aproveitar as oportunidades emergentes, devemos preparar a nossa vida para que aconteçam as oportunidades que farão a diferença. São elas que vão trazer maior competência e autonomia e que vão assegurar uma trajetória exitosa. Preparar a nossa vida é dotá-la das condições que nos vão transformar, ou seja, é preparar-nos para alcançar as realizações que nos permitam estar em FELICIDADE.
Viver na mente certa é buscar essa felicidade de forma clarividente e sistemática, é identificar que recursos necessitamos para estar nessa trajetória. Então, ganha especial importância saber identificar as condições que facilitam a obtenção desses recursos? E, também, como é possível ir aumentando o controlo sobre o processo de preparação da nossa vida e, consequentemente, sobre o processo da nossa preparação? Sem fazer uma análise que esgote as condições que podem contribuir para essa preparação seleciono algumas que me parecem particularmente pertinentes.
A primeira de todas é ter ENTUSIASMO. É a primeira porque ela faz diferença desde o início da nossa vida. O entusiasmo faz o bebé ter maior interesse pelas pessoas e objetos do seu ambiente, leva-o a interagir mais com eles, a ter maior curiosidade, enfim a ter uma ATIVIDADE que lhe vai permitir mais rapidamente chegar a determinados estados psicológicos de prontidão para desenvolver competências e adquirir maior confiança e autonomia. Esta premissa permanece ao longo da nossa vida pois os adultos com entusiasmo são aqueles que navegam mais permanentemente nos mares da felicidade.
Uma outra condição para viver na mente certa, que expressa a lealdade à nossa condição de seres sociais, é a AFILIAÇÃO, consagrada como uma das necessidades humanas na célebre pirâmide de Maslow. Na construção de um estado psíquico favorável ao desenvolvimento pessoal e ao bem-estar psicológico não podemos desprezar a afiliação. Estar com os outros humanos, realizar atividades que assegurem ligações afetivas com eles constituem condições fundamentais do desenvolvimento mental. Diminuir a realização de atividades de natureza social e colaborativa constitui um risco com custos excessivos para o nosso bem-estar psicológico.
A sociedade tecnológica em que vivemos e, aquela que está a chegar, promove sentimentos ilusórios de bem-estar e felicidade pela manipulação individualista das virtualidades disponibilizadas pelos equipamentos. A atividade tecnológica excessiva conduz-nos a um aprisionamento num funcionamento aditivo caraterizado pela dependência da gratificação mais imediata, pela dificuldade em lidar com a frustração, por uma significativa perda de liberdade nas escolhas das atividades gratificantes da vida e por empobrecimento mental e diminuição do controlo sobre o propósito de vida. Manter a ligação às outras pessoas como aspeto central da nossa vida, continuar a realizar atividades em parceria e colaboração com outros humanos é vital para o bem-estar psicológico.
Uma outra condição para viver na mente certa é o AUTOCONHECIMENTO.
Os objetivos importantes da nossa vida são nossos, os meios para os alcançarmos têm igualmente de ser nossos. Vivemos cada vez mais numa sociedade que oferece múltiplos modelos e referências sobre tudo e mais alguma coisa. Seguir as receitas da moda é insuficiente para alcançar um estado distintivo de realização e felicidade. Naturalmente que podemos e devemos aproveitá-las.
Contudo, a escolha e usufruto das modalidades que podem oferecer bem-estar deve estar associada a um autoconhecimento profundo. É o nosso propósito de vida pelo que o plano tem de ser gizado por nós e deve incluir elementos com os quais nos identificamos significativamente. Seguir as receitas oferecidas pelos múltiplos canais de divulgação atualmente disponíveis não permite essa identificação.
O estado de complexidade da sociedade atual, a multiplicidade e diversidade de fontes de informação, obriga ao desenvolvimento suficiente desse processo de autoconhecimento sob pena de apenas sermos marionetes ao serviço da publicidade, do marketing, das redes sociais, etc. Saber mais profundamente quem somos e como funcionamos é obrigatório para viver na mente certa. Este autocuidado deve fazer-se com apoio a especialistas do funcionamento da mente e do comportamento humano, os psicólogos. Um bom nível de autoconhecimento assegura o estado de prontidão para elaborar e operacionalizar os projetos adequados à nossa vida, à nossa pessoa.
Uma outra condição, a última que aqui apresento e que certamente não esgota as potenciais condições do bem-estar psicológico, é a existência de um PROPÓSITO DE VIDA. Perante tantos modelos sobre como vivermos a nossa vida, perante tantas condições que facilitam a obtenção imediata de supostos estados de conhecimento e mestria, pode haver um deslumbramento da facilidade em viver a vida.
Contudo, esta vida externamente apresentada coloca-nos na posição de meros personagens de um filme cujo guião não foi por nós escolhido. Quero saber como se faz um jantar gourmet? Vou ao Youtube e em 5 minutos já sou um especialista. Quero ser terapeuta de desenvolvimento pessoal, faço um curso online de 20 horas e estou pronto para ajudar pessoas. Quero dar conselhos sobre moda, gestão financeira, etc? faço uma página na internet, ou um podcast, e transformo-me rapidamente num influencer. O apoio destes supostos especialistas carece de autenticidade porque eles não têm suficiente mestria nem facilitam a apropriação dos elementos necessários para uma transformação evolutiva. O pressuposto que antes enunciei sobre o desenvolvimento gerado pela internalização de propriedades inicialmente externas que são transformadas em elementos internos organizadores da nossa atividade mental não é consagrado nestas atividades. Porque os elementos externos não têm frequentemente qualidade suficiente e porque, mais do que gerar desenvolvimento a lógica destes especialistas é promover dependência.
Possuir entusiasmo pela vida e nutri-lo de forma regular, manter uma ligação afetiva com outros humanos e realizar atividades colaborativas, aprofundar o autoconhecimento e estabelecer metas e objetivos com valor ao serviço de um propósito de vida são condições fundamentais para viver na mente certa e cuidar do bem-estar psicológico.
Assumir a responsabilidade pela nossa vida e pelo nosso desenvolvimento pessoal implica uma atividade contínua de aprendizagem e crescimento. Não podemos esperar que a vida aconteça, somos nós que a temos de fazer acontecer. Só preparando a nossa vida seremos capazes de nos preparar a nós próprios.
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